Realizamos uma roda sonhada há anos sobre a relação do Flamenco, o Luto e a Psicanálise. Um sonho que se concretizou ao som do David Caldeira e a nossa ”Frida Flamenca” Milene Muñoz. Abraçamos a morte ao som dos ”Tarantos” mas foi de mãos dadas com a vida que encerramos com ”Alegrias”!
A arte flamenca é uma dança que trabalha a transitoriedade do belo. Remete à finitude, cada ato é realizado como se fosse o último, por isso seu impacto tão profundo. A história do flamenco remete aos povos nômades, à transição de um povo rural para os centros urbanos, o início da burguesia. Nessa transição feudal, muitos povos perderam seu lugar e se concentraram em regiões da Andaluzia. Uma dança que exprime a cultura de um povo estrangeiro, o luto da perda do pertencimento. Segundo a psicanálise, somos um eu corporal, ou seja, há uma integração do psiquismo e do corpo. Nosso corpo não é feito apenas de carne, mas da representação mental que fazemos dele. Uma imagem mental do nosso corpo tal como o sentimos. Quando estamos diante de uma apresentação de arte, algo nos capta, nos hipnotiza ou não causa efeito algum.
Nessa linha levantamos algumas questões: Seria a arte uma possibilidade de elaboração de perdas? Houve alguma transmissão da arte flamenca como uma experiência?
Para que haja essa transmissão, é necessário que o espectador esteja disponível para essa experiência estética se deixando tocar pela força da obra. Poderíamos pensar que a função da arte é adormecer nossa consciência e nos despertar para nossos impulsos criadores? Sentir a beleza como uma sensação física e não apenas uma ideia pré concebida do que é belo?
Pensando nesse lugar do "estrangeiro" ocupado pelos povos nômades na origem da dança flamenca, poderíamos pensar a expressão dessa arte como uma forma de sublimação das pulsões desse povo sem pertencimento? Uma forma criadora e estética de dar um novo destino à libido (energia psíquica) que pode operar tanto pela vida ou pela morte?
Tivemos como convidada especial a artista Milene Muñoz, que fez um relato sobre como a dança flamenca a ajudou a lidar com as limitações impostas sobre seu corpo em função de uma doença autoimune.
A roda apostou na arte como um dos recursos para a elaboração do luto e expressão da dor.
Entendemos que o luto decorre não somente de perdas reais, morte ou abandono de uma pessoa querida, mas também de formas abstratas ou simbólicas. Poderia ser o flamenco a busca de um lugar de pertencimento familiar, uma alternativa para lidar com a angústia?
Pensar em elaboração de perdas, remete ao trabalho do luto mas no que ele consiste?A palavra trabalho vem da palavra latina “tripalium”, instrumento de tortura usado para punir escravos. Com a chegada do capitalismo, a noção de trabalho passou a significar a capacidade humana para transformar a natureza produzindo objetos que lhe permitem ultrapassar a condição natural e entrar para a ordem humana na cultura. Ou seja, o conceito de trabalho obtém um duplo sentido, ao mesmo tempo em que é um objeto de tortura e sofrimento, é uma transformação. Segundo Freud o trabalho do luto também possui um duplo sentido: despender energia psíquica no objeto perdido que exige um esforço penoso e o de superação/ transformação para o reinvestimento da libido em novos objetos após ter-se desvinculado do objeto amado inexistente. Elaboração de perdas, é justamente esse trabalho psíquico penoso de oposição do ego a abandonar uma posição libidinal e aceitar a perda que se atualiza no sofrimento.
Como dizia Federico Garcia Lorca, é necessário abraçar a morte e aceitar a finitude humana para se compreender o que é o flamenco.
No campo do projeto da Casa Frida, seguimos com nosso tema de pesquisa da arte como um recurso de elaboração da dor da perda, propondo espaços de compartilhamento de experiências e questionamentos.
A roda foi um grande marco no nosso projeto! Tema que nos inspira a prosseguir nossa pesquisa sobre o enigma do luto e a relação com as artes. Tivemos ainda a participação especial da Paula Mandel que aceitou nosso convite em articular esses temas com tanta poesia! Agradecemos aos 54 participantes que se deixaram tocar pela transitoriedade da experiência estética.